Parte IV
Era um sonho dantesco... O tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho,
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar do açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...
Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras, moças... mas nuas, espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs.
E ri-se a orquestra, irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Se o velho arqueja... se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...
Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece...
Outro, que de martírios embrutece,
Cantando geme e ri...
No entanto o capitão manda a manobra
E após, fitando o céu que se desdobra
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."
E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da roda fantástica a serpente
Faz doudas espirais!
Qual num sonho dantesco as sombras voam...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás! ...
A terceira fase romântica é marcada por uma poesia de acentuado compromisso social. Denominada poesia condoreira, tem como símbolo o condor, cujo sentido é a liberdade de expressão e de linguagem. Victor Hugo foi o poeta francês que mais influenciou esta geração cuja poesia entra num processo de universalização, isto é, procura expressar a realidade de um grupo social.
Assim, seja por imitação dos padrões europeus, seja por simples entusiasmo romântico, o fato é que a poesia brasileira de caráter social restaurou sua identidade com o povo, anunciando o novo na vida nacional. Trata-se, portanto, de uma época de transição em que surge uma literatura preocupada com a denúncia social.
Castro Alves foi o mais importante representante da poesia condoreira no Brasil. Seus poemas sociais tratam de questões como a crença no progresso e na educação como forma de aprimoramento social, da República e, principalmente, o fim da escravidão negra. O tom vigoroso, a ressonância de seus versos, a indignação e a expressividade são elementos que consagraram o “poeta dos escravos”.
Condoreiro, a sua poesia serviu de instrumento de luta contra a escravidão, pois o seu tom de elevação era propício para récitas em locais públicos: praças, salões de leitura etc. A eloquência dos versos está evidenciada em poemas que denunciavam a vida miserável dos escravos. O poeta aproxima-se da realidade social, embora conserve ainda o idealismo e o subjetivismo românticos.
“O navio negreiro” (ou “Tragédia no mar”), inserido na obra Os Escravos, é um dos poemas mais famosos de Castro Alves. Quando foi composto, em 1868, o tráfico de escravos já estava proibido no país; contudo, a escravidão e seus efeitos persistiram. Para denunciar a condição miserável e desumana dos escravos, o poeta valeu-se do drama dos negros em sua travessia da África para o Brasil.
Dividido em seis partes ( com alternância métrica variada para obter o efeito rítmico desejado em cada situação retratada), é apresentado da seguinte forma: na primeira parte, o eu lírico limita-se a descrever a atmosfera calma que sugere beleza e tranquilidade; na segunda parte, descreve marinheiros de várias nacionalidades, caracterizando-os como valentes, nobres e corajosos; na terceira parte, o eu lírico introduz a verdadeira intenção do poema – a denúncia do tráfico de escravos, através de expressões indignadas.
Na quarta parte, o eu lírico passa a descrever, com detalhes, os horrores e castigos de um navio de escravos.
Na quinta parte, ele invoca os elementos da natureza para que destruam o navio e acabem com os horrores que mancham a beleza do mar, destacando a vida livre dos negros na África e a escravidão a que são reduzidos no navio.
Finalmente, na sexta parte, ele indica a nacionalidade (brasileira), invocando os heróis do Novo Mundo, para que eles, por terem aberto novos horizontes, possam acabar com a infâmia da escravidão.
Comentários sobre o poema (parte IV)
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O texto apresentado(a parte IV de “O navio negreiro”) é a descrição do que se via no interior de um navio negreiro. Note a capacidade de Castro Alves em nos fazer “ver” a cena, como se estivéssemos em uma montagem teatral: o tombadilho do navio transformado em um palco infernal.
Os versos têm dez sílabas métricas que se alternam com versos de seis sílabas métricas; as sílabas tônicas são construídas pela sexta e a décima; o esquema das rimas é aabccb; todas as estrofes transcritas são compostas de seis versos.
O rompimento do equilíbrio métrico ( os versos são heterométricos) é uma conseqüência do quadro horroroso configurado. A descrição é crua e a cena revoltante. A repetição da terceira estrofe no final dá-lhe uma natureza de refrão.
Outro dado interessante é o emprego que o poeta faz da linguagem, trabalhando ora os adjetivos para descrever com mais expressividade o cenário e o elemento humano, ora os verbos para reforçar o dinamismo do "balé". A grandiloqüência vem com toda com toda força, onde o exagero cumpre, sem dúvida, a função de emocionar( passa a focalizar o drama que é o fulcro do poema).
Logo no início, o eu lírico compara o navio negreiro a um “sonho dantesco”. Com essa expressão, faz referência às terríveis cenas descritas pelo escritor italiano Dante Alighieri, em “O inferno”, parte da obra A divina comédia. Horroriza-se com a situação infame e vil dos negros no tombadilho( as correntes, o chicote, a multidão, o sofrimento, a “dança”macabra). O ritmo nos é dado por algumas palavras especiais de acentuada sonoridade(“tinir”, “estalar”, por exemplo).
Repare na imagem das “Negras mulheres”: não há mais leite para alimentar as “magras crianças”(somente sangue) e, por citar as “tetas”, faz-se analogia a um mero animal. Ao descrever as moças nuas (condição de ausência de proteção) espantadas, arrastadas em meio à multidão de negros esquálidos (magros), o eu lírico apela para que o leitor sinta piedade pelo sofrimento do ser humano (piedade cristã). As reticências conduzem à reflexão, à intensidade da dramaticidade diante da situação condenável, horrenda.
Do ponto de vista cromático, duas cores são postas em contraste na primeira e segunda estrofes. Estas cores são o vermelho e o preto, que compõem o dramático painel em que o sangue dos escravos contrasta com o negro de sua pele.
Há reincidente uso de imagens que sugerem desespero, sofrimento e dor. A exposição do velho arquejando(desumanização), acompanhado do chicote ( a serpente que “faz doudas espirais”), assemelha-se a de um animal, que acompanha a “orquestra”( os marinheiros aparecem representados pela orquestra que comanda a dança) sem reclamar... E essa “tragédia” se completa quando essa “multidão faminta”, que sofre sem cessar, geme de dor, chora e delira... Enfraquecidos, eles enlouquecem.
A cena é de uma crueldade atroz, já que, para se divertir, os marinheiros surram os negros. Repare no efeito expressivo da antítese que contrapõe o céu puro sobre o mar e a figura do capitão (regente da orquestra) cercado de fumaça. Ela estabelece o contraste entre a natureza como obra divina e a escravidão como obra demoníaca.
Depois de apresentar o navio como uma visão dantesca, uma figura diabólica (que também aparece no final da obra “A divina comédia”) é utilizada para o desfecho da última estrofe, finalizando a quarta parte do poema. O eu lírico ressalta o prazer (novamente exposto pelo verbo “rir”) daqueles que torturam (uma orquestra irônica, estridente)em oposição ao sofrimento dos escravos (um trágico balé dançado) para deleite de Satanás.
Observe algumas figuras de linguagem em destaque no poema:
Metáfora
“Era um sonho dantesco” (referência às cenas horríveis descritas por de Dante Alighieri no “Inferno” de sua Divina Comédia),
“ a serpente faz doudas espirais...”( a serpente seria o chicote usado pelos marinheiros),
“E ri-se a orquestra irônica”( a expressão caracteriza os marinheiros que comandam a dança).
Hipérbato
“Que das luzernas avermelha o brilho”( a ordem direta seria: Que o brilho das luzenas avermelha).
Comparação
“Legiões de homens negros como a noite”.
Hipérbole
“No turbilhão de espectros arrastadas”,
“sangue a se banhar”
Metonímia
“O chicote estala”.
A poesia abolicionista de Castro Alves demonstra que ele aprendeu muito bem o que ensinava o “mestre” Victor Hugo, ou seja, a possibilidade de registrar artisticamente não apenas o belo, mas, também, o grotesco. Nesse sentido, o condor francês lega ao condor brasileiro a audácia das imagens, no empenho da luta.
“O navio negreiro” – considerado seu melhor trabalho nesse campo – ilustra muito bem como o poeta tratava o tema: a escravidão negra era vista como uma instituição inadmissível num mundo que caminhava para um futuro melhor, em que o progresso tecnológico daria ao homem condições mais dignas de existência.