Vocabulário
Rutilância: qualidade de rutilante, muito brilhante, resplandecente.
Hipocondríaco: em sentido figurado, triste, melancólico.
Carnificina: grande quantidade de corpos mortos; matança.
Carbono: composto orgânico presente em todos os vegetais e animais.
Amoníaco: gás que se encontra nas matérias em decomposição.
Epigênesis: teoria da geração dos seres por estágios graduais. No texto, pode significar origem.
Paraibano, nascido em 1884, no engenho do Pau d’ Arco, filho de pequenos proprietários rurais,
Augusto dos Anjos testemunhou a ruína financeira da família, resultado da decadência do sistema latifundiário, que nos primeiros anos do século XX foi substituído pelas grandes usinas.
Iniciou seus estudos no Liceu Paraibano, em 1900, e já nesse ano publicava seu primeiro trabalho, o soneto
“Saudade”, no Almanaque do Estado da Paraíba. No ano seguinte, inicia colaboração no jornal O Comércio, publicando aí seus poemas até 1908.
Cursou Direito em Recife, sem nunca ter advogado; porém foi neste ambiente acadêmico que Augusto familiarizou-se com a ciência da época. Absorveu de tal modo os termos científicos, que passa a empregá-los na linguagem oral e escrita.
Durante toda a sua vida foi professor de Português e Literatura Brasileira, seja em bons estabelecimentos de ensino, como em aulas particulares.
Paralelamente as suas atividades como professor, sempre colaborou em jornais, publicando seus poemas. Em busca de melhores condições financeiras, Augusto foi para o Rio de Janeiro, passando sérias dificuldades para sustentar a esposa e os filhos.
Tudo isso agravou seu estado de íntima revolta, fazendo-o descrer do mundo e ver em tudo podridão física e moral.
Em 1912, com a ajuda do irmão, edita a sua coletânea de poesias com o título
Eu. O livro provocou escândalo entre os leitores da época que, acostumados à elegância parnasiana, depararam com uma obra cuja linguagem ainda hoje pode ser considerada de caráter original, paradoxal e até mesmo chocante.
Essa foi a única obra, pois veio a falecer dois anos depois dessa publicação, aos trinta anos de idade, vítima de pneumonia. Estava, então, no interior de Minas Gerais, para onde fora transferido a fim de exercer a função de diretor de um grupo escolar.
Seu único livro é composto de cinquenta e oito poemas, escritos quase todos em versos rimados e decassílabos. Tradicional do ponto de vista técnico, o
Eu aborda, porém, a temática da podridão, da decomposição, do terror, da morte e do sofrimento. Posteriormente, a obra foi republicada com o acréscimo de outros textos, passando a ser chamada
Eu e outras poesias.
Augusto dos Anjos é um poeta que não se encaixa nos moldes de nenhuma corrente literária, autor de uma poesia pessimista, mórbida, de imagens impactantes. É
parnasiano na forma (soneto, métrica e rima),
naturalista no vocabulário (uso de terminologia científica),
simbolista na sonoridade áspera de seus versos,
decadentista no pessimismo de suas constatações,
expressionista pelas distorções e exagero, mas essas classificações não conseguem apreender toda a complexidade de sua poesia. A influência de estéticas do século XIX aproximou-o dos demais autores
pré-modernistas, mas a ausência de referências ao Brasil de sua época diferenciou-o deles.
Os poemas de Augusto dos Anjos tematizam a
dor de existir e a inevitabilidade da
morte. Não se trata, porém, de uma poesia espiritualista, que reflete sobre o destino da alma. Pelo contrário, fixa-se na matéria e no processo de decomposição do corpo. O eu lírico afirma a incondicional podridão para a qual se dirige todos os homens, destino que desqualifica a existência. Seguindo o pensamento do filósofo alemão
Schopenhauer, de grande repercussão no período, Augusto dos Anjos via a dor como a essência do mundo e os momentos de prazer, apenas como sua suspensão temporária.
Para expressar sua visão negativa, o eu lírico desestabiliza a própria poesia, recorrendo a termos e a imagens incomuns no campo poético, como se lê em
“Psicologia de um vencido”.
O poema descreve as ações do
eu e do
verme. O eu somatiza o drama existencial, enquanto o verme arquiteta silenciosamente a destruição final do eu. O vocabulário científico, tomado principalmente à química e as imagens repulsivas reforçam a natureza perecível e finita do homem.
Para explicar o procedimento poético de Augusto dos Anjos, o crítico Anatol Rosenfeld usou a expressão exogamia linguística, que significa a introdução de um elemento estranho no fluxo histórico de uma língua. No caso da poesia pré-modernista, o elemento estranho não eram os estrangeirismos, mas sim o
vocabulário científico, os coloquialismos e os termos relacionados à
deterioração do corpo, que, ao lado de palavras consideradas comuns em poemas, resultam em uma combinação insólita e provocativa, que dessacralizou o poema e lhe deu um novo vigor.
Comentários sobre o poema
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Embora o título contenha a palavra “Psicologia”, o poema (soneto, composto de versos decassílabos, com esquema rímico ABBA ABBA CCD EED) detém-se a tratar da matéria, das substâncias químicas que formam o “eu”, evitando maior introspecção. Apesar disso, é possível constatar o negativismo interior do eu lírico, que se considera “vencido” em virtude da fragilidade física do ser humano e da força implacável da morte.
Na primeira estrofe, o eu lírico se remete a um fato da infância que se estende até o presente. Profundamente pessimista em relação à vida, ele tem em si mesmo a visão de ser apenas um conjunto de substâncias químicas (“Eu filho do carbono e do amoníaco”) cujo destino, através do desenvolvimento do poema, é a morte e a decomposição.
Essa concepção trágica da existência em Augusto dos Anjos, essa dor de existir tão caracteristicamente simbolista assume, como em Cruz e Sousa, uma dimensão cósmica: “Sofro, desde a epigênesis da infância, / A influência má dos signos do zodíaco”. Perceba que estes versos, além de revelarem certa angústia moral, abordam a miséria da existência humana desde o momento de sua constituição mais elementar.
Na segunda estrofe, o eu lírico apresenta o seu desagrado em relação ao ambiente que vive. Palavras como “hipocondríaco”, “ânsia” e “cardíaco” exprimem a concepção do homem como um ser mórbido e doentio.
A partir da terceira estrofe, o eu lírico projeta suas expectativas para o futuro. Para isso, utiliza o maior símbolo da degenerescência e da podridão da matéria humana: “o verme”. Observe que o poeta utiliza o recurso da metáfora “operário das ruínas” para caracterizá-los. “As ruínas” seriam o corpo humano sem vida, com os vermes, em seu trabalho de decomposição, comparados a operários.
Na última estrofe, o eu lírico trata a morte friamente, como se a pressentisse e se preparasse para vivê-la. A rudeza é evidenciada nas imagens do “sangue podre das carnificinas”, do roer dos olhos pelo verme e da permanência exclusiva dos cabelos.
O pessimismo verificado em “Psicologia de um vencido” está presente em quase toda a obra de Augusto dos Anjos. Mas, se na visão do poeta as forças da matéria conduzem apenas ao mal e ao nada, o que resta a esse eu que guarda em si toda a angústia do mundo?
A linguagem do poema surpreende e modifica uma tradição poética brasileira, constituída em grande parte com base em sentimentalismos, delicadezas, sonhos e fantasias (desvinculação da arte com o conceito de beleza). “Carbono”, “amoníaco” e “epigênesis”, por exemplo, são vocábulos empregados poeticamente por Augusto dos Anjos que tradicionalmente seriam considerados antipoéticos (os mesmos provêm da ciência, particularmente da Química).