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quinta-feira, 9 de julho de 2020

Cinco Horas - Mário de Sá-Carneiro

Cinco Horas - Poema de Mário de Sá-Carneiro


Minha mesa no Café,
Quero-lhe tanto... A garrida
Toda de pedra brunida
Que linda e fresca é!

Um sifão verde no meio
E, ao seu lado, a fosforeira
Diante ao meu copo cheio
Duma bebida ligeira.

(Eu bani sempre os licores
Que acho pouco ornamentais:
Os xaropes têm cores
Mais vivas e mais brutais.)

Sobre ela posso escrever
Os meu versos prateados,
Com estranheza dos criados
Que me olham sem perceber...

Sobre ela descanso os braços
Numa atitude alheada,
Buscando pelo ar os traços
Da minha vida passada.

Ou acendendo cigarros,
— Pois há um ano que fumo —
Imaginário presumo
Os meus enredos bizarros.

(E se acaso em minha frente
Uma linda mulher brilha,
O fumo da cigarrilha
Vai beijá-la, claramente)

Um novo freguês que entra
É novo actor no tablado,
Que o meu olhar fatigado
Nele outro enredo concentra.

É o carmim daquela boca
Que ao fundo descubro, triste,
Na minha idéia persiste
E nunca mais se desloca.

Cinge tais futilidades
A minha recordação,
E destes vislumbres são
As minhas maiores saudades...

(Que história de Oiro tão bela
Na minha vida abortou:
Eu fui herói de novela
Que autor nenhum empregou...)

Nos cafés espero a vida
Que nunca vem ter comigo:
— Não me faz nenhum castigo,
Que o tempo passa em corrida.

Passar tempo é o meu fito,
Ideal que só me resta:
Pra mim não há melhor festa,
Nem mais nada acho bonito.

— Cafés da minha preguiça,
Sois hoje — que galardão! —
Todo o meu campo de acção
E toda minha cobiça.


Mário de Sá-Carneiro (Lisboa, 1890 — Paris, 1916)

Estudou em Paris, onde se matriculou na Faculdade de Direito. Foi muito amigo de Fernando Pessoa e com este fundou a revista Orpheu (1915). Espírito neurótico, profundamente sensível, suicidou-se  em um dos quartos do Hotel Nice, na França. Poderia ter produzido mais. O que deixou dá a dimensão de um dos grandes poetas da literatura de Portugal.

 Considerações gerais

Sua poesia contém as inovações formais do futurismo, porém mescladas harmoniosamente com o clima terno das velhas redondilhas lusitanas, à maneira dos poemas de "saudade", sentimento tão fundamental na cultura portuguesa. Mário de Sá-Carneiro não tem o impulso intelectual que caracteriza a inteligência de seu colega Fernando Pessoa, mas nem por isso deixa de ser um poeta de magnífica autoconsciência, especialmente autoconsciência carregada de certo humor triste, de quem se perdeu dentro de si mesmo. Na prosa, mais precisamente nos contos, Mário de Sá-Carneiro cria situações de absurdo com a identidade dos personagens, aproximando-se bastante da representação surrealista de investigação mágica do mundo.

Obras

Poesia: Dispersão (1912), Indícios de Ouro (1937, publicação póstuma);
Novelas: Princípio (1912), A Confissão de Lúcio (1914), Céu em Fogo (1915),
Teatro: A Amizade (1912);
Correspondência: Carta a Fernando Pessoa (1958-59, publicação póstuma).

Atividade proposta

1) 

Aponte o aspecto mais evidente do modernismo que constatamos ao longo do poema. Em outros termos, que aspecto temático é obviamente uma novidade modernista, dentro do poema?

2)  

Partamos da hipótese de que o poema lido tenha traços passadistas, além de modernistas. Quais seriam esses traços e a que outra escola literária estariam vinculados?







Figuras de linguagem utilizadas no Barroco

35 Figuras de Linguagem: o guia COMPLETO com as principais figuras

Quando se utiliza de maneira não-convencional a linguagem, explorando-se os aspectos conotativos das palavras e novas maneiras de construir frases, estão sendo criadas as figuras de linguagem, também chamadas figuras de estilo.

De seus dentes pálidos surgiu, enfim, um sorriso.
A característica "pálidos"atribuída a "dentes" pode sugerir dentes amarelados ou sorriso triste, tímido, ou ambas as ideias.

"O mar passa saborosamente
A língua na areia." (Duardo Dusek)
O "mar"é personificado, tem características de seres vivos.
Na personificação do "mar", "língua" é usada em lugar de onda.

"Meu pinho toca forte 
Que é pra todo mundo acordar." (Chico Buarque de Holanda)
A palavra "pinho" é usada no lugar de violão.

"Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco." (Gonçalves Dias)
Construção com os termos da frase na ordem inversa:
A flor do tamarindo abriu-se há pouco. 
Obs.: na ordem direta, teríamos: “Há pouco a flor do tamarindo abriu-se.”

Em suma: Figuras de linguagem são certos recursos não-convencionais que o emissor cria para dar maior expressividade a sua mensagem.
Obs.: Esses recursos de linguagem acabam por caracterizar o estilo do escritor ou so falante que os emprega com frequencia.


A linguagem figurada ocorre quando se quer dar expressividade à mensagem através de:

☻ recursos semânticos, isto é, trabalhando a palavra do ponto de vista DE SEU SIGNIFICADO.
A encomenda precisa ser entregue rapidamente. Vá voando levá-la (Vá o mais rápido que puder!)

☻  recursos fonéticos, destacando os sons das palavras.
Falar em progresso urbano é sentir o ruído da britadeira trepidando na minha cabeça e na rua.
(A repetição dos sons representados pela letra "r" sugere o ruído constante dos grandes centros urbanos.)

☻ recursos sintáticos, trabalhando a construção da frase.
"No aconchego
Do claustro, na paciência e no sossego,
Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!" (Olavo Bilac)
(A repetição do conectivo "e" intensifica a ideia de dedicação ao trabalho.)

Em função dessas ocorrências, há figuras semânticas, figuras fonéticas e figuras sintáticas.

Definição e exemplos das figuras de linguagem usadas no Barroco

Todo o trabalho literário do Barroco estava centrado no uso elaborado dos recursos da língua. Para produzir imagens inesperadas e conciliar os opostos, os autores do período exploravam os jogos de palavras e várias figuras de linguagem, entre as quais estão:

Metáfora

É o emprego de um termo com significado de outro em vista de uma relação de semelhança entre ambos. É uma comparação subentendida (um termo adquire o sentido de outro por afinidade de característica).

“Seus dois sóis me contemplavam”, “As rugas da terra.”: trata-se de aproximações de ordem subjetiva em que o sentido original está transmutado, guardando suas características principais em ordem simbólica. No caso do primeiro, “sóis” é uma metáfora para olhos, e a característica que os aproxima é o formato circular e o brilho intenso.

Oh! Que saudades que tenho/Da aurora da minha vida. (Casimiro de Abreu)
O autor compara “aurora” ao início da vida dele.

Estas altas árvores/ são umas harpas verdes com cordas de chuva/ que tange o vento. (Cecília Meireles)
Ocorre uma comparação mental entre as árvores e o instrumento musical. As duas produzem sons.

Outros exemplos: 
"O Brasil é novo, é um país pivete." (Abel Silva)

"Tinha a alma dos sonhos povoada." (Olavo Bilac)

"Não sei que nuvem trago no meu peito
Que tudo quanto vejo me entristece..." (Alexandre de Gusmão)


Comparação

É a aproximação de dois termos entre os quais existe alguma relação de semelhança, como na metáfora. A comparação, porém, é feita por meio de um conectivo e busca realçar determinada qualidade do primeiro termo.

"A minha filha é como um anjo". Este exemplo expressa a comparação feita por uma mãe, elogiando algumas características que tornam a sua filha parecida com um anjo.

"Os olhos dela eram como o sol". Nesse sentido, usa-se a palavra "olhos" em analogia ao "sol" para dizer que a pessoa em questão tem olhos belos.

"E há poeta que são artistas
E trabalham nos seus versos
Como carpinteiro nas tábuas!..." (Alberto Caeiro)

A chuva caia como lágrimas de um céu entristecido.

Observação:
A comparação assemelha-se à metáfora, que não é mais que uma comparação não assumida, para acentuar a identidade poética entre as duas entidades comparadas.

Lendo a expressão "Os teus olhos são como lagos gélidos" existe uma comparação explícita denotada pelo conectivo "como" (ou outro elemento comparativo: feito, tal qual, que nem, igual a,…). Contudo, se dissermos, "Os teus olhos são lagos gélidos", passamos a ter uma metáfora que passa a estabelecer uma relação de identidade poética em vez da mais prosaica comparação que mantém os dois objetos em universos distintos.

Metáfora: Aquele atleta é um touro.
Comparação: Aquele atleta é forte como um touro.



Hipérbole

Hipérbole é uma figura de linguagem caracterizada pelo exagero. A palavra tem origem do termo grego “hiperbolé”, que é resultado da junção de duas palavras “hiper” (além/ por cima/ sobre/ por cima/ além) + “bole” (lançar/ atirar), que traduzindo ficaria algo como “atirar para cima” ou “lançar além”, que também representa o sentido de “excesso” ou “exagero”.A hipérbole geralmente é utilizada para ressaltar algo, para dar ênfase ou para conferir ao texto uma maior expressividade. 

Romperam-se enfim as cataratas do céu
(Padre Antônio Vieira) 

“Rios te correrão dos olhos, se chorares (…)” (Olavo Bilac)

“Queria querer gritar setecentas mil vezes
Como são lindos, como são lindos os burgueses” (Caetano Veloso)

“Pela lente do amor
Vejo tudo crescer
Vejo a vida mil vezes melhor”. (Gilberto Gil)


Prosopopeia (personificação)

Prosopopeia (ou personificação) significa atribuir a seres inanimados (sem vida) características de seres animados ou atribuir características humanas a seres irracionais.


Prosopopeia é uma figura de linguagem usada para tornar mais dramática a comunicação. 

Encontramos exemplos de prosopopeia nos três versos abaixo:

“O mar passa saborosamente a língua na areia

Que bem debochada, cínica que é

Permite deleitada esses abusos do mar”

O trecho, retirado da canção Folia no Matagal, de Eduardo Dusek, encontramos alguns exemplos de prosopopeia. O mar, ser inanimado, passa a língua na areia de maneira saborosa. O mar não tem língua, não pode passá-la de maneira saborosa em lugar algum. A areia, por sua vez, também inanimada, não pode ser debochada, cínica ou estar deleitada. Todas essas são características humanas.

La fora, no jardim que o luar acaricia, um repuxo apunhala a alma da solidão.” (Olegário Mariano) 

Hoje a cobiça assentou-se no lugar da equidade.” (Alexandre Herculano)

"Ah! Cidade maliciosa
De olhos de ressaca
Que das índias guardou vontade de
Andar nua." (Ferreira Gullar)



Antítese

Figura que consiste no emprego de termos com sentidos opostos, que contrastam entre si. A antítese parece, com justiça, encarnar melhor que qualquer outra figura de linguagem o espírito divido do homem barroco, que se vê sempre em dúvida diante de duas direções opostas: o aproveitar a vida e o medo da morte e da danação; a privação da vida e a inexistência de Deus; o predomínio da razão em detrimento da fé, etc.

"Tristeza não tem fim.
Felicidade sim..." (Vinícius de Moraes)

“Sou teu céu e teu inferno, a tua calma.
Sou teu tudo, sou teu nada
… Eu sou o teu mundo, sou teu poder”. (Paula Fernandes)


“O mito é o nada que é tudo.” (Fernando Pessoa)

“Que vai, pisando a terra e olhando o céu.” (Vinicius de Moraes)

“A vida é mesmo assim/Dia e noite, não e sim.” (Lulu Santos e Nelson Motta)


"Nasce o sol, e não dura mais que um dia
Depois da luz se segue a noite escura
Em tristes sonhos morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria."

(À instabilidade das cousas do mundo – Gregório de Matos)

Observação: Nesse exemplo, o poeta barroco utiliza pares de termos com sentidos opostos: “dia” e “noite”, “luz” e “escura”, “tristezas” e “alegria”.


 Paradoxo

É uma figura de linguagem caracterizada pela associação de conceitos contraditórios na representação de uma só ideia. Embora esses conceitos contraditórios possam parecer ilógicos, acabam formando uma unidade semântica aceitável, passível de ser real.

Enquanto figura de linguagem, é um recurso utilizado na linguagem oral e escrita que aumenta a expressividade da mensagem, representando o ilógico, o absurdo, o impossível e a falta de nexo. É um recurso muito útil para expressar ironia e sarcasmo.

“Amor é fogo que arde sem se ver
É ferida que dói e não se sente
É um contentamento descontente
É dor que desatina sem doer”.
(Camões)

Nestes versos, percebe-se que o poeta constrói o sentido do Amor-ideia, amor universal, filosofando a respeito do amor, não falando de seus sentimentos pessoais. Para isso, ele se apropria de elementos que, apesar de se excluírem mutuamente, se fundem num mesmo referente, constituindo afirmações aparentemente sem lógica.

Outros exemplos:

“Sendo a sua liberdade/Era a sua escravidão.” (Vinicius de Moraes)
“Estou cego e vejo./Arranco os olhos e vejo.” (Carlos Drummond de Andrade)

"Já estou cheio de me sentir vazio." (Renato Russo)

“Se você quiser me prender,/vai ter que saber me soltar.” (Caetano Veloso)

"Sendo a sua liberdade/Era a sua escravidão. (Vinicius de Moraes)

"Bastou ouvir o teu silêncio para chorar de saudades." (Reinaldo Dias)


"Eu fujo ou não sei não, mas é tão duro este infinito espaço ultra fechado." (Carlos Drummond de Andrade)


Antítese e paradoxo: qual é a diferença?

Embora sejam figuras de pensamento baseadas na oposição, o paradoxo e a antítese se distinguem .

O paradoxo emprega ideias opostas, da mesma maneira que a antítese, entretanto, essa contradição ocorre entre o mesmo referente do discurso.

Para entender melhor essa diferença veja os exemplos abaixo:

Dormir e acordar está difícil. (antítese)
Estou dormindo acordado. (paradoxo)

Note que ambos os exemplos utilizam os opostos “dormir” e “acordar”. Entretanto, o paradoxo propõe uma ideia, supostamente absurda, mas que faz sentido, pois enquanto dormimos não podemos estar acordados.


Nesse caso, a união dos termos contrários gerou um significado metafórico coerente à expressão “dormir acordado”. O enunciado significa que a pessoa está acordada, entretanto, com muito sono.

Outros exemplos:

"De repente do riso fez-se o pranto." (Vinícius de Moraes)

"Onde queres bandido sou herói." (Caetano Veloso)


"É proibido proibir." (Caetano Veloso)











quinta-feira, 2 de julho de 2020

Sermão da Sexagésima (fragmento) - Pe. Antônio Vieira




“Fazer pouco fruto a palavra de Deus no mundo, pode proceder de um de três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. 

Para uma alma se converter por meio de um sermão, há-de haver três concursos: há-de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há-de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há-de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz, há mister espelho e há mister olhos. Que coisa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, é necessária luz e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento. Ora suposto que a conversão das almas por meio da pregação depende destes três concursos: de Deus, do pregador e do ouvinte, por qual deles devemos entender que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus?” 

"Primeiramente, por parte de Deus, não falta nem pode faltar. Esta proposição é de fé, definida no Concílio Tridentino, e no nosso Evangelho a temos. Do trigo que deitou á terra o semeador, uma parte se logrou e três se perderam. E porque se perderam estas três? A primeira perdeu-se, porque a afogaram os espinhos; a segunda, porque a secaram as pedras; a terceira, porque a pisaram os homens e a comeram as aves. Isto é o que diz Cristo; mas notai o que não diz. Não diz que parte alguma daquele trigo se perdesse por causa do sol ou da chuva. A causa por que ordinariamente se perdem as sementeiras, é pela desigualdade e pela intemperança dos tempos, ou porque falta ou sobeja á chuva, ou porque falta ou sobeja o sol. Pois porque não introduz Cristo na parábola do Evangelho algum trigo que se perdesse por causa do sol ou da chuva? Porque o sol e a chuva são as influências da parte do Céu, e deixar de frutificar a semente da palavra de Deus, nunca é por falta do Céu, sempre é por culpa nossa. Deixará de frutificar a sementeira, ou pelo embaraço dos espinhos, ou pela dureza das pedras, ou pelos descaminhos dos caminhos; mas por falta das influências do Céu, isso nunca é nem pode ser. Sempre Deus está pronto da sua parte, com o sol para aquentar e com a chuva para regar; com o sol para alumiar e com a chuva para amolecer, se os nossos corações quiserem: Qui solem suum oriri facit super bonos et malos, et pluit super justos et injustos (“Que fez nascer seu sol sobre os bons e os maus e chover sobre os justos e os injustos”). Se Deus dá o seu sol e a sua chuva aos bons e aos maus; aos maus que se quiserem fazer bons, como a negará? Este ponto é tão claro que não há para que nos determos em mais prova. Quid debui facere vineae meae, et non feci? (“Que devia eu ter feito à minha vida e não fiz?”) - disse o mesmo Deus por Isaías.” 


Sendo, pois, certo que a palavra divina não deixa de frutificar por parte de Deus, segue-se que ou é por falta do pregador ou por falta dos ouvintes. Por qual será? Os pregadores deitam a culpa aos ouvintes, mas não é assim. Se fora por parte dos ouvintes, não fizera a palavra de Deus muito grande fruto, mas não fazer nenhum fruto e nenhum efeito, não é por parte dos ouvintes. Provo.

Os ouvintes ou são maus ou são bons; se são bons, faz neles fruto a palavra de Deus; se são maus, ainda que não faça neles fruto, faz efeito. No Evangelho o temos. O trigo que caiu nos espinhos, nasceu, mas afogaram-no: Simul exortae spinae suffocaverunt illud. O trigo que caiu nas pedras, nasceu também, mas secou-se: Et natum aruit. O trigo que caiu na terra boa, nasceu e frutificou com grande multiplicação: Et natum fecit fructum centuplum. De maneira que o trigo que caiu na boa terra, nasceu e frutificou; o trigo que caiu na má terra, não frutificou, mas nasceu; porque a palavra de Deus é tão funda, que nos bons faz muito fruto e é tão eficaz que nos maus ainda que não faça fruto, faz efeito; lançada nos espinhos, não frutificou, mas nasceu até nos espinhos; lançada nas pedras, não frutificou, mas nasceu até nas pedras. Os piores ouvintes que há na Igreja de Deus, são as pedras e os espinhos. E porquê? -- Os espinhos por agudos, as pedras por duras. Ouvintes de entendimentos agudos e ouvintes de vontades endurecidas são os piores que há. Os ouvintes de entendimentos agudos são maus ouvintes, porque vêm só a ouvir subtilezas, a esperar galantarias, a avaliar pensamentos, e às vezes também a picar a quem os não pica. Aliud cecidit inter spinas: O trigo não picou os espinhos, antes os espinhos o picaram a ele; e o mesmo sucede cá. Cuidais que o sermão vos picou e vós, e não é assim; vós sois os que picais o sermão. Por isto são maus ouvintes os de entendimentos agudos. 

Mas os de vontades endurecidas ainda são piores, porque um entendimento agudo pode ferir pelos mesmos fios, e vencer-se uma agudeza com outra maior; mas contra vontades endurecidas nenhuma coisa aproveita a agudeza, antes dana mais, porque quanto as setas são mais agudas, tanto mais facilmente se despontam na pedra. Oh! Deus nos livre de vontades endurecidas, que ainda são piores que as pedras! A vara de Moisés abrandou as pedras, e não pôde abrandar uma vontade endurecida: Percutiens virga bis silicem, et egressae sunt aquae largissimae. Induratum est cor Pharaonis. E com os ouvintes de entendimentos agudos e os ouvintes de vontades endurecidas serem os mais rebeldes, é tanta a força da divina palavra, que, apesar da agudeza, nasce nos espinhos, e apesar da dureza nasce nas pedras.

Pudéramos arguir ao lavrador do Evangelho de não cortar os espinhos e de não arrancar as pedras antes de semear, mas de indústria deixou no campo as pedras e os espinhos, para que se visse a força do que semeava. E tanta a força da divina palavra, que, sem cortar nem despontar espinhos, nasce entre espinhos. É tanta a força da divina palavra, que, sem arrancar nem abrandar pedras, nasce nas pedras. Corações embaraçados como espinhos corações secos e duros como pedras, ouvi a palavra de Deus e tende confiança! Tomai exemplo nessas mesmas pedras e nesses espinhos! Esses espinhos e essas pedras agora resistem ao semeador do Céu; mas virá tempo em que essas mesmas pedras o aclamem e esses mesmos espinhos o coroem.

Quando o semeador do Céu deixou o campo, saindo deste Mundo, as pedras se quebraram para lhe fazerem aclamações, e os espinhos se teceram para lhe fazerem coroa. E se a palavra de Deus até dos espinhos e das pedras triunfa; se a palavra de Deus até nas pedras, até nos espinhos nasce; não triunfar dos alvedrios hoje a palavra de Deus, nem nascer nos corações, não é por culpa, nem por indisposição dos ouvintes.


Supostas estas duas demonstrações; suposto que o fruto e efeitos da palavra de Deus, não fica, nem por parte de Deus, nem por parte dos ouvintes, segue-se por consequência clara, que fica por parte do pregador. E assim é. Sabeis, cristãos, porque não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa dos pregadores. Sabeis, pregadores, porque não faz fruto a palavra de Deus? -- Por culpa nossa.

(Vieira, Pe. Antônio. Sermões. Rio de Janeiro. Agir, 1957.p102-4)


Atividades

1) Nesse trecho do sermão, temos apenas a discussão do aspecto relativo a Deus. Que argumentos Vieira apresenta para provar que não é por culpa de Deus que a pregação não frutifica?

2) É comum nos textos barocos a utilização de figuras de estilo como um recurso para enfatizar a realidade, através dos sentidos. Quais as figuras de linguagem empregadas pelo autor nesse trecho do Sermão da Sexagésima?

3) Em que trecho o pregador se apóia nas Sagradas Escrituras para ratificar suas palavras?