Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.
E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía.
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía.
Vocabulário
Vontades: afetos.
Ser: caráter.
Qualidades: valores.
Esperança: esperado.
Soía: costumava.
Mor: maior.
Vontades: afetos.
Ser: caráter.
Qualidades: valores.
Esperança: esperado.
Soía: costumava.
Mor: maior.
Segundo a edição das Rimas organizada por Costa Pimpão, Camões compôs em medida nova (versos decassílabos) treze odes, onze canções, nove elegias, oito éclogas, quatro oitavas e uma sextilha, além de 106 sonetos. Camões mostra extraordinária inspiração em todas as formas líricas que praticou, mas os sonetos se destacam do conjunto, não só pela quantidade, mas também pela qualidade, que não raro atinge o sublime. Nas outras modalidades, Camões também atinge momentos máximos de poesia, mas o soneto, por ser breve, ensejou-lhe um exercício de concentração poética que somente os poetas maiores conseguem realizar.
O soneto é uma forma de composição, de origem provençal, consagrada pelo poeta italiano Petrarca, no século XIV. Petrarca assimilou a essa forma medieval o espírito da Antiguidade greco-romana e fez o soneto tornar-se a composição lírica mais famosa do Ocidente. A influência petrarquista nos sonetos de Camões é notável, mas o poeta português soube marcar sua originalidade e estar à altura do modelo, rivalizando com ele na excelência de seus versos.
A lírica camoniana é marcada por uma visão do mundo dinâmica. A natureza e o homem, com seus sentimentos e afetos, estão sujeitos a mudança. Essa é a essência das coisas. Mas, para o homem, as transformações são sempre para pior, e de nada adianta estar prevenido, pois a mudança é imprevisível, uma vez que ela própria muda também.
A ideia de que toda a existência é constituída por contradições contínuas aparece em Heráclito, um dos maiores pensadores gregos. Foi Heráclito quem disse que ninguém pode banhar-se duas vezes no mesmo rio, por serem suas águas sempre outras e não mais aquelas em que nos banhávamos. Para este filósofo, e para uma longa tradição que o seguiu, nada fica sendo o que é, tudo muda, ou seja, tudo entra em contradição com o que era antes. Assim, para Heráclito, o mundo não passaria de uma eterna guerra de contradições e mudanças.
De qualquer forma, direta ou indiretamente, Camões foi sensível à tradição iniciada por Heráclito. Dessa tradição Camões veio a extrair, além da sugestão temática da mudança contraditória das coisas no tempo, a sugestão mais radical ainda de uma espécie de desconcerto do mundo, que é a inesperada mudança dentro da própria mudança, que exprime sempre um ritmo absoluto e degenerado do mundo.
Comentários sobre o poema
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Do ponto de vista conceptual, este é dos mais perfeitos sonetos camonianos. Todo ele afirma a instabilidade do mundo. É importante ressaltar que, enquanto as mudanças da natureza seguem um ritmo previsível (como as estações do ano, por exemplo), as alterações sofridas pelas pessoas são causa de inevitável sofrimento, porque vêm associadas à passagem do tempo.
Do ponto de vista formal, apresenta uma composição fixa de catorze versos, distribuídos em dois quartetos e dois tercetos, com versos em contagem decassílaba, com tônicas e subtônicas nas quartas e sextas sílabas. Há presença de rimas ao longo do poema: ABBA/ABBA/CDC/DCD (interpolada nos quartetos e cruzada nos tercetos).
Na 1ª estrofe, o eu lírico apresenta-nos a temática que vai desenvolver: a mudança. Essa ideia é explicitada nos seguintes trechos: “Muda-se o ser, muda-se a confiança; / Todo o mundo é composto de mudança”. Reconhece a mudança que envolve tudo: os sentimentos, o caráter, a confiança, os valores humanos. Observe as anáforas (repetição da mesma palavra no princípio de frases ou versos consecutivos) referentes ao verbo ´´mudar``.
Na 2ª estrofe, o eu lírico emite sua opinião sobre as mudanças (elas não são as esperadas e sempre trazem o pior). É o pessimismo e a frustração, porque tanto do bem, conceituado com algo hipotético (´´se algum houver``), quanto do mal (consistente na ´´lembrança``) o que resulta são saudades ou mágoas. Neste sentido, o único dado permanente parece ser a tristeza, pois para ela não há saída nem alternativa.
Na 3ª estrofe, para exprimir suas desilusões e seus conflitos diante do mundo, o eu lírico estabelece uma comparação entre a ação do tempo sobre si próprio e sobre a natureza. As expressões ´´neve fria`` refere-se ao inverno e ´´verde manto`` à primavera. As expressões ´´doce canto`` e ´´choro``, estados de espírito do eu lírico, referem-se respectivamente à alegria e à tristeza. A ação do tempo para a natureza é positivo, pois transforma o inverno em primavera (estação das flores); para o eu lírico, contudo, é negativa, pois transforma a alegria em tristeza. Para estabelecer essas comparações, o eu lírico faz uso da antítese, uma figura de linguagem que consiste em aproximar ideias opostas.
Os pares antitéticos são : neve fria e verde manto; doce canto e choro. A oposição de ideias confirma o estado emocional do conflito, desagregação, mágoa e frustração do eu lírico. São demonstrações de que o mundo é dominado pelas contradições e mudanças que tendem ao labirinto e à perplexidade.
Na 4ª e última estrofe, o eu lírico parece estar conformado com o fluxo natural da mudança, porém algo o incomoda: ´´Que já não se muda mais como soía``. É a pura constatação de que própria mudança é inconstante e se altera (chave de ouro do soneto). A inconstância das coisas deixa o eu lírico ainda mais desorientado( a mudança da própria mudança), pessimista e perplexo diante do mundo que ele não compreende. Sente-se manipulado pelo destino e pela fatalidade.
O desengano e o desconcerto representam um importante motivo poético não apenas na obra de Camões, mas também em toda tradição poética em língua portuguesa. O eu lírico desses textos filosóficos revela um homem angustiado e perplexo diante do seu tempo. A transitoriedade do mundo é muito veloz. Rapidamente se alteram os princípios e valores do convívio social, mas os valores do homem-indivíduo – não do homem massa, multidão – não se alteram à mesma velocidade. Daí o sentimento individual de desagregação, de desengano.
Camões foi o primeiro a aprofundar a tensão ´´eu x mundo`` – a essência do lírico –, inaugurando em língua portuguesa uma tradição explorada por quase todos os movimentos literários seguintes, até os nosso dias. O sentimento pessimista desses textos não condiz plenamente com o espírito renascentista. Da obra camoniana, a parte eminentemente renascentista são Os Lusíadas, contaminada ainda pelo espírito eufórico e nacionalista das navegações e descobertas.
A lírica de Camões, pelo conflito espiritual que revela, em grande parte pelas sutilezas de pensamento, pelo jogo constante das antíteses e pelas inversões de linguagem, prenuncia o movimento literário seguinte, o Barroco. Por esse motivo, a lírica camoniana é considerada por alguns como maneirista, dado que se chamou Maneirismo ao período de declínio do Renascimento e transição para o Barroco.
o mais bacana é um texto tão antigo ser tão atual..
ResponderExcluirPassei aqui pra conhecer e, pude perceber que seu blog é muito bom. estou seguindo =)
ResponderExcluirAcabando de adicionar aos favoritos o blog que anunciou no aeiou...parabéns :)Parece-me(numa leitura rápida)excelente a ideia,a selecção e a visão pessoal dos poemas.Vou ficar atenta...
ResponderExcluiruau, adorei os comentários
ResponderExcluirÓptima análise!
ResponderExcluirServi-me de alguns dos tópicos focados para preparar da análise que vou fazer, com os meus alunos, a este poema.
Gostei muito da sua análise. Particularmente da conjugação histórica e filosófica e, reflectindo, como nos leva a compreender que o pensamento criativo surge sempre num contexto sócio-político ou antropológico que desafia a todos à mudança, mas a alguns instiga à excelência.
ResponderExcluirContinuação de bom trabalho!
tenho prova amanha! achei uma analize otima e indiquei para amigos,obrigada!
ResponderExcluirEra mesmo desta análise que andava à procura. Levo uma parte dela para o meu "sítio"
ResponderExcluirAmanhã , 10 de Junho , é dia de Camões e de Portugal e acho que este soneto tão bonito se adequa na perfeição aos tempos que vivemos no meu país.
Muitos parabéns pelo seu blogue que passarei a seguir a partir de hoje.
Me ajudou muuuuito num trabalho da escola! Obrigado! <3
ResponderExcluirÓtimo
ResponderExcluirÓtimo me ajudou bastante à esclarecer algumas coisas
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